02 Mai 2018
“Temos que pensar na precariedade em que vivem as ex-religiosas quando suas congregações não as apoiaram e se tiveram que deixar a vida religiosa por causa de sua tentativa de denunciar. A precariedade é um fator não negligenciável para dissuadir fazer a denúncia, considerando que muitas congregações não contemplam um reconhecimento civil da formação que as religiosas recebem. Há garantias de liberdade de consciência para dizer as coisas pelo seu nome? A Igreja precisa preparar-se para ouvir as mulheres vítimas”. A análise é de Judith Schönsteiner e María Eugenia Valdés, em artigo publicado por El Mostrador, 28-04-2018. A tradução é de André Langer.
Finalmente, a cidadania eclesial, isto é, leigos, leigas, religiosos e religiosas determinados, insistentes e corajosos, junto com algumas vítimas de abusos de consciência, poder e sexuais, conseguiram romper ou contornar o cerco informativo em torno do Papa. Um cerco que, pelo que se sabe, foi estabelecido e mantido pela própria hierarquia eclesial, inclusive a chilena. O enviado do Papa, o arcebispo Charles Scicluna, fez – sem prejuízo de que possamos analisá-lo quando tivermos acesso ao relatório – um bom trabalho. Pessoas por muito tempo incrédulas diante das denúncias e, certamente, sem nenhuma suspeita de serem “progressistas”, ficaram chocadas e se convenceram diante da esmagadora evidência de abusos estruturais. Os bispos são convocados para Roma. Certamente, não se falará apenas de Barros, embora o arcebispo de Santiago queira interpretar dessa maneira a carta do Papa.
A carta do Papa tem sido um sinal de esperança para muit@s na Igreja. É preciso saber sua linguagem política, de relações diplomáticas e jurídicas. Mas há um fato que não pode passar em brancas nuvens: é a primeira vez que um Papa reconhece um erro de avaliação próprio. Outras pessoas são mais céticas: não acreditarão antes de ver ações concretas de justiça, reparação e renovação da Igreja. Muitas vezes, dizem, o perdão não deu em nada para as vítimas.
Dentro de poucos dias, James Hamilton, José Murillo e Juan Carlos Cruz se encontrarão com o Papa Francisco no Vaticano [o que aconteceu entre os dias 27 e 30 de abril]. Em poucos dias, a justiça chilena decidirá sobre a indenização no caso Karadima. Até hoje, embora os protocolos de prevenção e capacitação tenham sido revisados, a Conferência dos Bispos do Chile não aprovou mecanismos de reparação para as vítimas em geral. Em nossa opinião, as vítimas não pedem nada de extravagante: a quantia solicitada corresponde ao dinheiro que a Arquidiocese recebeu ao dissolver a Pia União Sacerdotal de Karadima e pretende-se usar esses recursos para acompanhamento psicológico de vítimas de abusos sexuais no Chile, incluindo os da Igreja.
Além disso, precisamos ouvir uma voz no debate sem a qual não poderíamos sequer pretender fazer uma reflexão honesta. Uma voz que tantas vezes está ausente na Igreja, e mais ainda, na sociedade chilena. Falta a voz das vítimas femininas. Vítimas de abusos de consciência, poder e sexuais por padres ou suas superioras religiosas.
Por que elas, as vítimas mulheres, ainda não saíram publicamente para falar? Pode haver muitas causas. Uma, certamente, é o abuso de poder permanente contra as mulheres: o machismo que se exacerba nas estruturas da Igreja Católica. O machismo considera “normal” um certo tratamento dado à mulher, que constitui em si um abuso; os abusos de consciência, de poder e sexuais contra as mulheres estão naturalizados.
Nessa situação, é ainda mais difícil falar. Estão essas mulheres trabalhando em postos-chaves, capacitadas psicologicamente, com conhecimentos atualizados e uma visão sobre o gênero que permita acolher um relato de abusos nas instituições eclesiais que recebem as denúncias? Está a Igreja preparada para julgar corretamente as provas de abusos contra mulheres, uma vez que grande parte de sua hierarquia (e parte dos leigos) ainda não foi atualizada em sua visão em relação às mulheres?
Mas há também muitas perguntas práticas que a Igreja deve se fazer: existe um protocolo para prevenir os abusos sexuais contra menores, meninos e meninas, que menciona de passagem também “adultos vulneráveis”. No entanto, não os define em nenhum momento e não estabelece mecanismos específicos para eles. E o protocolo não conseguiu a denúncia por parte das mulheres. Portanto, surgem muitas perguntas:
Existem mecanismos de proteção para as mulheres que denunciam? Mecanismos que protegem contra a revitimização e contra novas agressões por parte d@s perpetradores? Foram concebidos e organizados mecanismos de acompanhamento psicológico e espiritual, se fosse desejado, independentemente da instituição que recebe a denúncia? Ou ainda estamos diante de uma situação em que o acompanhamento psicológico é privilégio de mulheres bem situadas? Sem acompanhamento profissional, como poderia uma vítima de população que ganha apenas o mínimo, denunciar e resistir a todos os processos que envolvem provas, testemunhos? Encontrará a mulher vítima uma escuta na perspectiva de gênero, de sua perspectiva como mulher, seja ela mãe ou sem filhos? Certamente, o protocolo poderia ser usado por analogia, mas há questões específicas que devem ser abordadas, que vamos detalhar na sequência.
Sem pais que os reconheçam, os filhos de sacerdotes já crescem desprotegidos; expô-los, além disso, ao público, poderia ser motivo para que as vítimas mães não façam a denúncia. Será possível encontrar um mecanismo que se preocupe com o delicado equilíbrio entre confidencialidade (muitas vezes desejado apenas para proteger as crianças!) e um mecanismo de colaboração com a Justiça nos casos em que seja possível? Um mecanismo de apoio aos filhos de sacerdotes que não recebem auxílio-alimentação, especialmente se nasceram fruto de uma violação? A Igreja já se perguntou seriamente sobre o seu dever de reparação no caso de aborto forçado de religiosas ou leigas que, com ou sem consentimento, tiveram relações sexuais com sacerdotes e conceberam?
Temos que pensar na precariedade em que vivem as ex-religiosas quando suas congregações não as apoiaram e se tiveram que deixar a vida religiosa por causa de sua tentativa de denunciar. A precariedade é um fator não negligenciável para dissuadir fazer a denúncia, considerando que muitas congregações não contemplam um reconhecimento civil da formação que as religiosas recebem. Portanto, para as religiosas que foram vítimas, há garantias de sustento no caso de denunciarem e/ou serem vítimas de represálias, uma vez que, muitas vezes, os colégios católicos ou instituições da Igreja são o único lugar onde podem trabalhar?
Em suma, acima de tudo, há garantias de liberdade de consciência para dizer as coisas pelo seu nome? A Igreja precisa se preparar para ouvir as mulheres vítimas.
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Quando as mulheres vítimas de abusos na Igreja vão começar a falar? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU